quinta-feira, 2 de abril de 2009

Dizei

“Não tenho nada por baixo…” ele ficou de boca aberta a olhar para os olhos dela, malévolos e deliciosamente castanhos. Por mais que se repetissem as fantasias sexuais da sua mulher, ainda se espantava quando ela as levava à prática arrastando-o naquele mundo labiríntico de aventuras voluptuosas. Ela virou-se de forma provocante e foi buscar uma bebida ao bar.

Estava numa festa de uma amiga dela e ele sentia-se pouco à vontade naquele ambiente. Não gostava da música, não gostava dos amigos dela, não gostava do fumo dos cigarros que o sufocava e inundava a sua roupa, não gostava da bebida que tinha no copo, não gostava do copo que segurava, não gostava, detestava estar ali. Só gostava dela, por ela se sacrificava e por ela suportava a dor de cabeça, o cheiro a cigarro e os seus amigos vazios.

Os olhos dele seguiam-na expectantes. Ela não ficaria por ali e ele sabia-o. Os convidados estavam todos atentos ao outro lado da sala. Tinham desligado a música que parecia feita por martelos e agora a dona da casa ia tocar piano. Sentiu-se aliviado, mas em breve ficaria a adorar martelada…! Entretanto a sua mulher abriu a porta de uma salinha de estar e desapareceu deixando-a aberta. Cedo voltou a assomar à porta. Trazia uma cadeira que pousou ainda dentro da salinha. Só ele a via e ela sabia disso. Fizera de propósito. Sentou-se. Primeiro cruzou as pernas. Depois descruzou-as e abriu-as debaixo do vestido comprido e largo que trazia. Baixou-se revelando o seu colo acompanhado por um sorriso maldoso. As suas mãos afagaram as pernas até encontrarem a bainha do vestido. Depois levantou-a lentamente. Tornando-se séria foi arrepanhando o vestido numa tortura desejável. O vestido subia, subia, revelando os riscos rosa nas pernas nuas forçados pelas unhas pintadas de escarlate que arranhavam. A boca dela mordia-se à medida que se revelava a ausência de roupa interior. O espectáculo continuou até se mostrarem os seios hirtos em forma de peros apontando para ele. Atirando os seus lisos longos cabelos negros para trás, ergueu as pernas e flectiu os joelhos, cravando os saltos dos seus sapatos no tampo da cadeira. Os seus lábios entreabriram-se e gemia baixinho só para ele ouvir. Apanhou o copo que deixara no chão e encostou-o à intimidade descoberta. O choque térmico fê-la estremecer. A boca dele, seca, desejava beber daquele copo que agora rodava deixando o corpo contorcer-se de prazer. Infelizmente os aplausos encerraram a terrível música dispersando as pessoas para aquele lado da sala e a porta fechou-se com um beijo enviado pelo ar. O corpo dele, perturbado, procurou uma cadeira onde poderia disfarçar o ângulo comprometedor.

Essa noite acabou no automóvel dentro do estacionamento subterrâneo do prédio onde moravam. Pelo menos para ela, que logo adormeceu quando chegou à cama. Para ele foi a noite mais longa que até então conhecera. Não conseguia dormir. Já não era a primeira vez e tornava-se frequente perder o sono depois de uma noite de amor com a sua mulher, o que, convenhamos, é estranho. Noite de amor? Seria de amor? Ou de puro sexo? Questionava-se cada vez mais se era amor que sentia, se seria só uma louca atracção que um dia o convencera a casar. Eram duas pessoas bastante diferentes. Tinha consciência disso desde os tempos de namoro: ele gosta de música calma, ela só gosta de música de discoteca, ele odeia discotecas, ela não pára de dançar, ele é abstémio, ela é uma esponja, ele odeia banho de imersão, ela pratica mergulho, ele nem pratica desporto, ela adora futebol, ele só gosta de automobilismo, ela nem sequer tem a carta, ele ri-se do Tarot, ela tem consultas com cartomantes, ciganas e astrólogos, ele é doido por astronomia, ela detesta o próprio sol, ele bronzeia-se, ela fica na esplanada debaixo do toldo, ele gosta de acordar tarde, ela não deixa, ele fecha os estores, ela abre-os, ele despe-se na casa de banho, ela anda nua pela casa, ele é friorento, ela adora gelo nas bebidas, ele nem no Verão, ela é viciada em café, ele não tem vícios, ela fuma dois maços de tabaco por dia, ele não cheira mal da boca, ela detesta poesia, ele adora preliminares, ela também, mas só com sexo a seguir.

Deixava para trás as diferenças e os seus pensamentos entregavam-se agora, após encher novamente o copo de whisky, ao comum que era pouco, mas existia. Só se lembra de episódios com sexo à mistura: aquela vez que chegara a casa do trabalho e trouxera os sobrinhos a pedido do irmão. Ao abrir a porta do quarto estava ela deitada na cama com uma lingerie vermelha e negra rendada e provocante com uma cara de sofrimento fingido e pedindo “por favor” para lhe tirar as algemas. Ele só pensava na estória que teria que inventar para os sobrinhos. Ela dizia-lhe que só revelava onde estava a chave se lhe desse o que tinha “para mim dentro das calças”. Ela ali presa à cama – doida! – dava-lhe vontade de… em vez disso retirou-se e foi explicar aos sobrinhos que “às vezes brinco com a tia aos índios e aos cowboys…” “ Ah! É por isso que ela está quase nua. É índia, não é?” Tivemos que brincar com eles o resto da tarde e pintar a minha sobrinha “como a índia-grande”. O amor pelas crianças era comum. Mas pelas crianças dos outros. Ela só suportaria contratos a curto prazo.

Outra paixão comum era o cinema, mas mesmo essa deixara-se perder por entre a nudez das pernas dela. Qualquer que seja o género da película, dez minutos depois, o fio dental já estava no bolso da camisa dele, quente e húmido, vinte minutos e a mão dele desaparecia no fundo da perna alçada sobre as dele, trinta e ela devorava-o literalmente.

Nestas memórias intercaladas com muito gelo e whisky para aquecer a noite, não encontrava nem uma que o identificasse mais com ela do que aquelas que envolviam sexo. Gostava disso, excitava-o, mas a ausência de elos mais forte para além dos físicos preocupava-o. Ela não o preenchia intelectualmente. Não conseguiam manter uma conversa por muito tempo e a culpa era dela. Ele era capaz de viver ao seu ritmo – geralmente elevado, com o sangue a correr-lhe rápido nas veias ao som da música dos bares à noite -, mas também ansiava pela natureza e pela paz interior que lhe dava o repouso num simples banco de jardim.

De repente, mas docemente, uma mão pousa no seu ombro direito e um beijo aflora no pescoço que se verga pela carícia doce e demorada. Devagar as bocas aproximam-se num beijo lânguido que faz subir as temperaturas dos corpos enquanto que as mãos já procuravam abaixo da cintura a virilidade que enchia de prazer e desejo. Em breve desaparecia dentro dela e os gemidos que fugiam pela janela da varanda ouviam-se na rua deserta. Mas isto não era tudo!

Um vazio apoderou-se dele após o acto. E aí pensou nela. Chama-se Alice e é quem ouvia atentamente os seus desabafos e crises emocionais, as suas divagações e loucuras existenciais. Era com Alice que ele observava a natureza e discutia os versos de amor e de ódio dos poetas contemporâneos. Era com Alice que se esquecia da sua condição humana.

Ele e Alice conheciam-se desde a adolescência, bem antes de ele encontrar aquela que agora é a sua mulher. Uma relação empática e jovial sempre os ligara, mas ultimamente Alice apercebeu-se que algo estava mal com o seu amigo. Perguntou-lhe:

- “ Porque me mandaste flores ontem? ”

- “ Não é a primeira vez que te mando flores… ”

- “ Eu sei… Mas é a primeira depois de casares… ”

- “ Não gostaste? ”

- “ Sabes que gosto de flores. ”

Um silêncio perturbador apoderou-se dos dois. Aproximava-se o pôr-do-sol e Alice virou-se para o astro-rei pondo-se de lado para o seu amigo que não parava de a fitar. Não estava frio e os louros caracóis de Alice esvoaçavam impelidos pela leve brisa que soprava naquele fim de tarde.

- “ Estás muito calado… ”

- “ Sabes que gosto do silêncio. ”

- “ Julga-se o valor de uma pessoa pelo lugar que o silêncio ocupa na sua vida. ”

- “ Serei condenado nesse teu julgamento, porque me apetece falar, falar… ”

- “ Então fala. ”

E contou-lhe tudo. A sua relação com a mulher, a sua frustração, as suas insónias, as suas dúvidas… No fim, Alice abraçou-o:

- “ Estás mais aliviado? ”

- “ Estou. Mas isso nada resolve. Vou ter que falar com ela… Não posso consentir que esta farsa continue. Não me sinto bem. Quero uma mulher que perceba a minha mente para além do meu corpo. Uma mulher… assim como tu… ”

Alice devia ter dito que o amava. Amava-o tanto. Desde os tempos de escola. Esse amor não parara de crescer. Mas coragem para dizer, não tinha.

Um dia, ele veio ter com ela. Deu-lhe um poema de amor. Alice pensava que era para ela e o seu coração disparou.

- “ Quero dizer-te uma coisa muito importante. ”

Esperançada e tentando manter a calma Alice respondeu:

- “ Então diz. ”

- “ Vou-me casar. ”

Alice perdeu a fala e abraçou-se a ele como que a despedir-se do seu amor impossível.

Agora era a sua hipótese: o casamento não resultara, ele nunca se apartara dela e eram amigos. Alice devia ter dito que o amava. Não disse.

Ele, angustiado e pensativo, voltou para casa e ao voltar morreu num acidente de viação. Alice não aguentou a notícia. O seu grande amor morto num estúpido despiste de automóvel. Mais que a morte, o não lhe ter dito marcou-a tanto que perdeu a vontade de viver. Emagreceu, adoeceu e hoje tentou o suicídio. Está em coma. Estou a seu lado e tenho medo. Tenho medo que não volte à vida. Que morra. Sem lhe ter dito. Amava-a e não lhe disse. As lágrimas caem-me e não sei que faça.